Paciente do sexo feminino, compareceu a 1° consulta no IEDE aos 9 anos e 9 meses por quadro de pubarca precoce de início aos 7 anos de idade e surgimento de mamas bilateralmente aos 8 anos. Ao exame físico: menor sem dismorfias, genitália feminina sem cliteromegalia, em Tanner M2 + lipomastia P4.
Mãe trazia exames de fora e o que chamava atenção era uma USG pélvica com um volume uterino muito aumentado (volume 34,2cm²) com presença de volumoso cisto simples (5,6 x 5,6 x 4,3cm) no ovário esquerdo, exames laboratoriais com níveis muito aumentados de IGF-1 e uma idade óssea de 12 anos. Esses exames mantiveram-se alterados ao longo do acompanhamento e aos 10 anos e 7 meses a menor foi submetida a ooforectomia E e após a análise da peça cirúrgica foi diagnosticada como um teratoma maduro.
Aos 10 anos e 3 meses apresentou um quadro psiquiátrico com surto psicótico e alucinação, sendo diagnosticada com encefalite auto-Imune anti-receptor NMDA provavelmente associada ao teratoma. A RM de crânio e sela era normal e a dosagem do GH após TOTG mostrava-se < 1ng/ml em todos os tempos.
No pós-operatório apresentou queda inicial dos níveis de IGF-1, os quais voltaram a aumentar posteriormente e identificou-se nova massa em ovário D, suspeitando-se então de tumor ectópico produtor de GHRH, condição rara, com apenas 74 casos relatados na literatura, sendo que nenhum tinha origem ovariana.
Porém, a menor iniciou tratamento com imunoglobulina venosa para encefalite aos 11 anos e 10 meses, evoluindo posteriormente com melhora dos níveis de IGF-1, não sendo mais visualizado cisto em ovário D e a imunohistoquímica do teratoma não demonstrou tecido produtor de GH ou GHRH.
A suspeita atual é que esse aumento dos níveis de IGF-1 estejam diretamente associados a doenças autoimunes. A menor segue em acompanhamento e segue bem clinicamente.
Síndrome Lipodistrófica relacionada ao tratamento do HIV com HAART
Relato do Caso:
Paciente masculino, 51 anos, com história de HIV em tratamento com HAART (terapia antiretroviral de alta atividade) desde 2008, no momento com carga viral indetectável e DPOC em tratamento com glicocorticoides intranasais.
Compareceu à consulta endocrinológica com nódulo na tireoide achado nos exames de rotina, solicitados pelo seu médico. Nódulo com características ultrassonográficas sugestivas de malignidade, hipótese complementada com PAAF, Bethesda IV, sendo submetido à tireoidectomia total em outubro de 2018. Histopatológico mostrou microcarcinoma papilífero de 1cm, sendo estratificado como baixo risco e meta de TSH entre 0,5 e 2 mcUI/ml.
Ao exame físico apresentava sinais claros de lipoatrofia, com diminuição da gordura de bichat em membros, além de lipohipertrofia abdominal com obesidade central.
Na primeira consulta de endocrinologia o paciente já estava usando 100mcg de levotiroxina, porém, apresentava hipotireoidismo descompensado, sendo aumentado a reposição progressivamente no intuito de manter o TSH dentro da meta estabelecida, segundo seu risco de recorrência.
Após 2 anos de pós-operatório, usando 200mcg de levotiroxina, paciente ainda mantinha níveis de TSH fora da meta, apresentando um valor de 49,8 mcUI/ml, retornando à consulta com uma glicemia de jejum de 188 mg/dL, HDL 33 mg/dL, aumento de triglicerídeos 167 mg/dL e alteração das enzimas hepáticas.
Foi solicitado um novo perfil glicídico e metabólico que mostrou glicemia 277 mg/dL, HbA1C 9.8%, momento em que foi diagnosticado com Diabetes Mellitus e dislipidemia. Imediatamente foi iniciada terapia não medicamentosa com orientação a modificação do estilo de vida e a combinação de Insulina Glargina associado a análogo do receptor de GLP-1 (IGlarLixi), 16UI à noite. A levotiroxina foi aumentada para 250 mcg (2.5 mcg/kg), com indicação de troca dos horários das medicações evitando interações medicamentosas.
Após um mês de tratamento, o paciente retornou com controles glicêmicos dentro da meta estabelecida, sendo iniciado metformina XR 500mg (em doses progressivas até 2 gramas/dia) e aumentado para 24UI da IGlarLixi. Em dois meses, houve melhora do controle glicêmico, com HBA1C de 7,6% e TSH 10 mcUI/ml, sendo diminuída a dosagem da associação de IGlarLixi para16UI, adicionado Pioglitazona 30mg e a levotiroxina foi mantida, observando-se melhor controle dos níveis de TSH.
Discussão:
As taxas de infecção pelo HIV subiram exponencialmente ao longo dos últimos 10 anos, e com isso a eficácia do tratamento de primeira linha alcançou importante e sustentada supressão na replicação viral, elevando a sobrevida e qualidade de vida dos pacientes soropositivos, cuja carga viral passa a ser indetectável com o uso da HAART.
No entanto, esta terapia está relacionada com alterações metabólicas caracterizadas por dislipidemia, resistência à insulina, hiperglicemia e redistribuição da gordura corporal, englobando assim a síndrome lipodistrófica do HIV (SLHIV) que acarreta um aumento considerável do risco cardiovascular.
O desenvolvimento desta síndrome é tempo dependente, sendo que quanto maior o tempo de uso da HAART, maior será a lipodistrofia e mais graves as alterações metabólicas dos pacientes.
Estas alterações acontecem porque a HAART produz uma interrupção na diferenciação dos adipócitos, levando ao aumento de tecido adiposo visceral, maiores quantidades de citocinas pro-inflamatórias, principalmente fator de necrose tumoral alfa, diminuindo a expressão de fatores de transcrição que são indispensáveis para a diferenciação do adipócito, como o CEBP (enhancer binding proteins)e PPAR, levando a uma diminuição de tecido adiposo subcutâneo e consequente diminuição dos depósitos de ácidos graxos, aumentando sua concentração plasmática, o que vai levar à resistência insulínica e hiperglicemia.
O tratamento destas alterações metabólicas está baseado em tratar a fisiopatologia da doença individualizando cada paciente. No caso descrito, a combinação da insulina basal e agonista do receptor de GLP-1 foi a opção de início de tratamento, fornecendo controle glicêmico global e melhorando a adesão ao tratamento. A associação com outros antidiabéticos orais, como os sensibilizadores de insulina (Metformina e Pioglitazona), discutidos na sessão, representam ótimas opções terapêuticas, tanto para o tratamento do diabetes como para melhora dos desfechos metabólicos associados à lipodistrofia.
É importante lembrar de identificar as interações medicamentosas entre a HAART e as drogas usadas para tratamento da SLHIV, além de priorizar o tratamento multidisciplinar para o controle das doenças e a otimização da qualidade de vida desses pacientes, sendo de total relevância o contato entre o endocrinologista e o infectologista durante a tomada de decisões.
Orientador: Dr. Rodrigo de Oliveira Moreira
Relator do Caso: Giovanni Delmondes
Debatedora: Aline A. Buendía da Silva
Bibliografia:
K. S. LEOW et al, Human Immunodeficiency Virus/Highly Active Antiretroviral Therapy-Associated Metabolic Syndrome: Clinical Presentation, Pathophysiology,
and Therapeutic Strategies, The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism 88(5):1961–1976, doi: 10.1210/jc.2002-021704
Moreira et al. Diabetol Metab Syndr (2018) 10:26 https://doi.org/10.1186/s13098-018-0327-4, Combination of basal insulin and GLP‑1 receptor agonist: is this the end of basal insulin alone in the treatment of type 2 diabetes? da Cunha J et al . Antiretroviral therapy and lipid metabolism in HIV-infected patients, World J Virol 2015 May 12; 4(2): 56-77
Marcelle D Alves et al. HIV-associated lipodystrophy: a review from a Brazilian perspective, Therapeutics and Clinical Risk Management 2014:10 559–566
Lake et al, Practical Review of Recognition and Management of Obesity and Lipohypertrophy in Human Immunodeficiency Virus Infection, CID 2017:64 (15 May)
Fat Gain in Treated HIV Infection • CID 2017:64 (15 May)
ORSINE VALENTE et al, Síndrome Lipodistrófica do HIV: Um Novo Desafio para o Endocrinologista, Arq Bras Endocrinol Metab 2007;51/1 3
Na manhã do dia 06 de Junho de 2019 tivemos o prazer de discutir um caso raro de arrependimento após transição de gênero.
Reunimos os responsáveis pela criação do ambulatório de Disforia de Gênero (Dra. Amanda Athayde e Dr. Ricardo Meirelles) com os atuais responsáveis pelo atendimento (Dra. Karen de Marca, Dra. Amanda Laudier e Dra. Luisa Novo) e pudemos esclarecer dúvidas e discutir detalhes do caso apresentado.
Como se trata de um desfecho extremamente incomum, foi fundamental a revisão da literatura feita pelos residentes e a experiência desses profissionais para elucidar condutas possíveis e fatores predisponentes para aliviar o sofrimento do paciente em questão e prevenir novos casos.
Discutimos sobre uma paciente que se autodeclara transgênero feminina (sexo de nascimento masculino e identidade de gênero feminina) com incongruência de gênero desde os 16 anos, e que procurou atendimento para transição hormonal aos 20 anos, em dezembro de 2016.
A história revelava, na primeira infância, pouca interação social, evasão escolar, agressividade, fascinação por consertar objetos, uso de ansiolíticos aos 10 anos e tentativa de suicídio aos 17, após iniciar relacionamento com menino. Fazia uso de hormônios e roupas femininas desde o início de 2016. Na época, relacionava-se com transgênero feminina e foi expulsa de casa.
Iniciou terapia hormonal em fevereiro de 2017 após seguir protocolo de avaliação do processo transsexualizador e liberação psiquiátrica. Em três anos tentou suicídio duas vezes por frustrações pessoais com o tratamento. Em maio de 2019 apresentou interesse por pessoa do sexo feminino que não a aceitava e, por isso, decidiu interromper terapia hormonal demandando tratamento com testosterona.
A prevalência de pessoas que se declara transgênero gira em torno de 0,5% da população, entretanto, a busca ativa por tratamento médico para transição é entre 6 a 9 em cada 100.000. Desses, aqueles que relatam arrependimento representam 1%. Pela definição da OMS, trata-se, portanto, de um desfecho incomum de uma condição rara.
Vale ressaltar que a taxa de satisfação com o tratamento varia entre 87 e 97% e as complicações relacionadas ao diagnóstico incluem maior prevalência de portadores do vírus HIV, tentativas de suicídio, depressão, violência física e sexual, além de intenso sofrimento psíquico.
Sendo assim, o tratamento torna-se extremamente seguro e convidativo por apresentar taxa de sucesso elevada, prevenção de diversas comorbidades graves e baixa taxa de arrependimento.
Entretanto, por ser grave, esse desfecho requer atenção e prevenção. Por isso, é importante verificar rigorosamente possíveis fatores de risco e respeitar os critérios clínicos e de tratamento, já que essa medida se mostrou eficaz em reduzir tal complicação.
Os critérios para indicar tratamento hormonal incluem disforia de gênero persistente e bem documentada, capacidade para decidir e consentir com o tratamento, maioridade legal e compensação das comorbidades clínicas e psiquiátricas.
As cirurgias que incluem gonadectomia são irreversíveis e apresentam como critério adicional a inclusão de um tempo mínimo de 12 meses com terapia hormonal satisfatória e vivência no papel social desejado. Esse período muitas vezes é suficiente para que o paciente possa se ajustar, rever suas expectativas e decidir sobre a cirurgia com mais clareza.
No caso em questão, o paciente apresentava alguns fatores de risco e, embora os critérios para diagnóstico e terapia hormonal tenham sido respeitados, não foi possível evitar o desfecho. A equipe multidisciplinar ainda busca a melhor forma de aliviar o seu sofrimento, sendo a sessão clínica uma ótima oportunidade de esclarecimentos e inspiração.
Referências:
Eli Coleman, et al. (2012). Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero (7ª ed.)
Marta R. Bizic et al. Gender Dysphoria: Bioethical Aspects of Medical Treatment. 2018, Hindawi BioMed Research International
Chantal M. Wiepjes, et al. Amsterdam Cohort of Gender Dysphoria Study. J Sex Med 2018;1-9.
Sam Winter, et al. Transgender people: health at the margins of society. June 17, 2016.
Na sessão clínica sobre transplante simultâneo rim – pâncreas, discutimos o caso de uma paciente de 35 anos, hipertensa e dislipidêmica, com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 1 (DM1) desde os 12 anos e má adesão ao tratamento proposto desde o diagnóstico. Aos 29 anos, evoluiu com síndrome nefrótica e piora progressiva da função renal, com indicação de hemodiálise aos 34 anos de idade. Além da nefropatia diabética confirmada por biópsia renal, foram documentadas outras complicações microvasculares como retinopatia e neuropatia diabética.
Em janeiro de 2019, foi submetida a transplante rim pâncreas simultâneo, apresentando normalização da glicemia de jejum e da hemoglobina glicada (Hba1c), sem necessidade de uso de insulina após o transplante (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Evolução histórica laboratorial – Linha vermelha pontilhada marca o momento do transplante simultâneo pâncreas- rim
Dentre as três modalidades de transplante pancreático, ou seja, transplante de pâncreas isolado, transplante de pâncreas após transplante de rim e transplante de pâncreas rim simultâneo, o último se mostrou o tratamento ideal para pacientes com DM1 e taxa de filtração glomerular menor que 20 mL/min, devido a maior taxa de sobrevida dos enxertos. Quando ocorre sucesso do transplante, definido por normalização da Hba1c e da glicemia de jejum e independência da terapia com insulina exógena, observa-se que os efeitos no metabolismo glicídico e lipídico se mantém pelo menos até 5 anos pós transplante. Além disso, há evidências na literatura sugerindo benefício após o transplante em complicações microvasculares do diabetes. A contrapartida, porém, são os riscos da imunossupressão crônica e complicações perioperatórias, que pressupõe, sempre, uma avaliação cuidadosa e individualizada dos riscos e benefícios para os pacientes candidatos.
O transplante rim pâncreas simultâneo, dessa forma, deve ser considerado como uma opção terapêutica em pacientes com diabetes mellitus (DM) em fase pré-diálise ou dialítica. Para auxiliar no raciocínio das possíveis condutas nestes casos, montamos o fluxograma abaixo (Fluxograma 1). Vale atentar que caso o paciente tenha indicação de diálise e não haja disponível transplante simultâneo rim–pâncreas no momento, o paciente deve ser submetido primeiramente ao transplante de rim, e posteriormente, quando disponível, ao transplante de pâncreas, a fim de reduzir a mortalidade elevada do paciente com DM em hemodiálise.
Fluxograma 1
Visto o benefício do transplante de órgãos, torna-se indispensável o papel do médico como propagador da vida, incentivando a adesão ao programa de doação de órgãos e trazendo a responsabilidade para a sociedade como um todo, tornando o cidadão um instrumento ativo, para que continuemos a admirar a arte da vida.
Referências:
EKSER, B. et al. Impact of duration of diabetes on outcome following pâncreas transplantation. Internacional Journal of Surgery (2015) 21-27
Angelika C. Pancreas Transplantation for Patients with Type 1 and Type 2 Diabetes Mellitus in the United States: A Registry Report. Gastroenterol Clin N Am 47 (2018) 417-441
LEHMANN, R. Glycemic Control in Simultaneous Islet-Kidney Versus Pancreas- Kidney Transplantation in Type 1 Diabetes. Diabetes care. 2015
The Diabetes Control And Complications Trial / Epidemiology of Diabetes Interventions and Complications Study at 30 years: Overview. Diabetes care. 2014.
O complexo processo de transição de gênero requer avaliação e supervisão constante de equipe multiprofissional. Mesmo assim, quando surgem desafios como o arrependimento da transição surgem muitas dúvidas.
Este será o assunto da próxima sessão clínica sobre Disforia de Gênero. A atividade contará com a participação de membros da equipe multiprofissional do ambulatório e os residentes Daniel Sant’Anna e Fernanda Pescador.
Sessão clínica: 06/06/2019
Local: Auditório Arnaldo de Moraes-dentro da direção do IG.
Existe cura para o Diabetes Mellitus? Este será o assunto em pauta no dia 30 de maio, no Auditório Arnaldo de Moraes, às 10h, pelos doutores Camila Vicente dos Santos, Rafael Castellar e Larissa Gava Ziviani.
Relato de Caso:
Paciente, sexo feminino, 35 anos. Tem diagnóstico de Diabetes Mellitus tipo 1 desde os 12 anos. Em 2013, evoluiu com síndrome nefrótica e piora progressiva da função renal, estando – atualmente – em tratamento com hemodiálise. É hipertensa e dislipidêmica.
Vamos discutir no dia 30 de maio os seguintes pontos:
Qual a melhor opção de tratamento do Diabetes Mellitus e da doença renal neste caso?
Quais as técnicas cirúrgicas dos transplantes isolados de pâncreas e duplo rim-pâncreas?
Qual a sobrevida desses pacientes submetidos à transplante?
Riscos e benefícios deste tipo de tratamento?
Aguardamos vocês no Auditório Arnaldo de Moraes (após a porta de vidro no IG), às 10h, para aprendermos juntos sobre esse tema atual e palpitante.
Dra. Camila Vicente dos Santos – endocrinologista do Serviço de Diabetes do IEDE
Dr. Rafael Castellar – Pós-graduando em Endocrinologia do IEDE
Dra. Larissa Gava Ziviani – Residente em Endocrinologia do IEDE