Sessão Clínica: Disforia de Gênero

Na manhã do dia 06 de Junho de 2019 tivemos o prazer de discutir um caso raro de arrependimento após transição de gênero.

Reunimos os responsáveis pela criação do ambulatório de Disforia de Gênero (Dra. Amanda Athayde e Dr. Ricardo Meirelles) com os atuais responsáveis pelo atendimento (Dra. Karen de Marca, Dra. Amanda Laudier e Dra. Luisa Novo) e pudemos esclarecer dúvidas e discutir detalhes do caso apresentado.

Como se trata de um desfecho extremamente incomum, foi fundamental a revisão da literatura feita pelos residentes e a experiência desses profissionais para elucidar condutas possíveis e fatores predisponentes para aliviar o sofrimento do paciente em questão e prevenir novos casos.

Discutimos sobre uma paciente que se autodeclara transgênero feminina (sexo de nascimento masculino e identidade de gênero feminina) com incongruência de gênero desde os 16 anos, e que procurou atendimento para transição hormonal aos 20 anos, em dezembro de 2016.

A história revelava, na primeira infância, pouca interação social, evasão escolar, agressividade, fascinação por consertar objetos, uso de ansiolíticos aos 10 anos e tentativa de suicídio aos 17, após iniciar relacionamento com menino. Fazia uso de hormônios e roupas femininas desde o início de 2016. Na época, relacionava-se com transgênero feminina e foi expulsa de casa.

Iniciou terapia hormonal em fevereiro de 2017 após seguir protocolo de avaliação do processo transsexualizador e liberação psiquiátrica. Em três anos tentou suicídio duas vezes por frustrações pessoais com o tratamento. Em maio de 2019 apresentou interesse por pessoa do sexo feminino que não a aceitava e, por isso, decidiu interromper terapia hormonal demandando tratamento com testosterona.

A prevalência de pessoas que se declara transgênero gira em torno de 0,5% da população, entretanto, a busca ativa por tratamento médico para transição é entre 6 a 9 em cada 100.000. Desses, aqueles que relatam arrependimento representam 1%. Pela definição da OMS, trata-se, portanto, de um desfecho incomum de uma condição rara.

Figura 1. Pirâmide baseada na epidemiologia da Disforia de Gênero e do arrependimento após a transição

Vale ressaltar que a taxa de satisfação com o tratamento varia entre 87 e 97% e as complicações relacionadas ao diagnóstico incluem maior prevalência de portadores do vírus HIV, tentativas de suicídio, depressão, violência física e sexual, além de intenso sofrimento psíquico.

Sendo assim, o tratamento torna-se extremamente seguro e convidativo por apresentar taxa de sucesso elevada, prevenção de diversas comorbidades graves e baixa taxa de arrependimento.

Entretanto, por ser grave, esse desfecho requer atenção e prevenção. Por isso, é importante verificar rigorosamente possíveis fatores de risco e respeitar os critérios clínicos e de tratamento, já que essa medida se mostrou eficaz em reduzir tal complicação.

Figura 2: Fatores de risco relacionados ao arrependimento após transição de gênero
Figura 3: Critérios Diagnósticos para Disforia de Gênero

Os critérios para indicar tratamento hormonal incluem disforia de gênero persistente e bem documentada, capacidade para decidir e consentir com o tratamento, maioridade legal e compensação das comorbidades clínicas e psiquiátricas.

As cirurgias que incluem gonadectomia são irreversíveis e apresentam como critério adicional a inclusão de um tempo mínimo de 12 meses com terapia hormonal satisfatória e vivência no papel social desejado. Esse período muitas vezes é suficiente para que o paciente possa se ajustar, rever suas expectativas e decidir sobre a cirurgia com mais clareza.

No caso em questão, o paciente apresentava alguns fatores de risco e, embora os critérios para diagnóstico e terapia hormonal tenham sido respeitados, não foi possível evitar o desfecho. A equipe multidisciplinar ainda busca a melhor forma de aliviar o seu sofrimento, sendo a sessão clínica uma ótima oportunidade de esclarecimentos e inspiração.

Referências:

Eli Coleman, et al. (2012). Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero (7ª ed.)

Marta R. Bizic et al. Gender Dysphoria: Bioethical Aspects of Medical Treatment. 2018, Hindawi BioMed Research International

Chantal M. Wiepjes, et al. Amsterdam Cohort of Gender Dysphoria Study. J Sex Med 2018;1-9.

Sam Winter, et al. Transgender people: health at the margins of society. June 17, 2016.

Byne, et al.; Transgender Health 2018, 3.1

Transgênero no Esporte

Tema sempre palpitante e polêmico, a participação do transgênero no esporte tem sido debate de diversas reportagens na mídia e discussões em congressos médicos e de outras especialidades.

Em abril, nossa vice-diretora da ASSEP e coordenadora do Ambulatório de Disforia de Gênero do IEDE, Dra. Karen de Marca, esteve no Simpósio Integrado de Endocrinologia e Exercício (SIEEX) falando sobre o assunto.

Artigo*

O que sabemos até o presente momento

O hormônio testosterona é responsável, durante a puberdade, pela diferença entre homens e mulheres em relação ao desenvolvimento da massa muscular, maior concentração de hemoglobina, maior previsão de altura (o que realmente confere uma vantagem) e maior rendimento físico quando comparado às mulheres.

Mas, e no caso das mulheres trans? Como a terapia hormonal, baseada no uso de antiandrógenos e estrógenos, poderia interferir nesta performance? Em quanto tempo uma mulher trans já poderia competir em condições de equidade com mulheres cisgêneras. O nível de testosterona seria o único fator responsável pela determinação da participação dos trans nas competições?

Sabemos que não existe uma relação direta entre os níveis de testosterona e performance atlética.

A International Association of Athletics Federations (IAAF) determinou como critério de elegibilidade para participação da mulher trans ser reconhecida legalmente no gênero feminino é ter níveis de testosterona abaixo de 144ng/dL. Já o Comitê Olímpico Internacional definiu como ter o gênero feminino legalmente, estar em terapia hormonal cruzada por pelo menos um ano e ter níveis de testosterona abaixo de 288 ng/dL.

A discussão está longe de terminar, precisamos de mais estudos com a população trans e, sobretudo, com atletas transgênero.

*Dra. Karen De Marca, vice-presidente da ASSEP-IEDE 2019-2020

Referências Bibliográficas do texto:

– sport and transgender people: a systematic review of literature relating to sport participation and competitive sport policies. Jones BA et al. Sports Med 2017 47: 701-716
– Biological sex, gender and public policy. Van Anders S.M. policy insights from the behavioral and brain sciences 2017, vol 4 (2) 194-201.
– circulating testosterone as the hormonal basis of sex differences in athletic performance. Handelsman DJ. Endocrine Reviews 2018